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Consciência e ação: Tecendo a luta antirracista em contexto institucional

Artigo
20 novembro 2025
Consciência e ação: Tecendo a luta antirracista em contexto institucional

Mais um novembro, mês em que é comemorada a “consciência negra”, chega com seu peso histórico, ensejos de celebração aos passos caminhados, mas seu legado mais urgente é um chamado à ação e luta contínua.

Em um país onde 51% da população se declara negra, segundo o IBGE, reconhecer essa data — transformada em feriado nacional apenas em 2023 — é mais do que um marco simbólico: é reconhecer também as marcas ainda presentes do racismo estrutural. Esta data é um espelho que reflete uma nação plural, mas que ainda não superou as feridas de seu passado escravagista.

Mas como transformar a consciência em prática? E como instituições comprometidas com impacto social podem contribuir de forma permanente para a equidade racial?

Desigualdades raciais: o passado que molda o presente

Para entender o desafio, é preciso reconhecer: determinados grupos estão mais expostos à vulnerabilidade social devido à raça, gênero, território, classe e outras camadas de desigualdade que se cruzam.

Essa compreensão não é nova. Em 4 de novembro de 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) denunciou em um texto-manifesto nacional a falsa abolição e a manutenção da exclusão social da população negra. As reinvindicações incluíam, sobretudo, o dia 20 de novembro como uma data simbólica para a resistência e a luta em prol da reparação histórica pela escravidão.

“(...) Negamos o 13 de maio de 1988, dia da abolição da escravatura, como um dia de libertação. Por quê? Porque nesse dia foi assinada uma lei que apenas ficou no papel, encobrindo uma situação de dominação sobre a qual até hoje o negro se encontra:  jogado nas favelas, cortiços, alagados e invasões, empurrado para a marginalidade, a prostituição, a mendicância, os presídios, o desemprego e o subemprego sendo sobre si, ainda, o peso desumano da violência e representação policial. Por isto mantendo o espírito de luta dos quilombos, gritamos contra a situação de exploração que estamos submetidos, lutando contra o racismo e toda e qualquer forma de opressão existente na sociedade brasileira.” Gonzalez e Hasenbalg, 1982¹.

Quarenta e três anos depois, o texto do MNU continua contemplando as realidades existentes por todo território nacional. Suas demandas atestam as lacunas em relação a garantia de liberdade e a dignidade plena, indicando que a luta é contínua e que as injustiças se aprofundam quando a cor da pele se soma a outras formas de exclusão. 

O CIEDS, como organização que visa a promoção de mais prosperidade para todas as pessoas, reconhece que faz-se necessária a compreensão das estruturas históricas que limitam oportunidades e geram estratificação social e desigualdades raciais institucionalizadas

Esse reconhecimento é um passo crucial para que seja possível incidir ações de maneira equitativa, garantindo que elas sejam qualificadas e intencionais na promoção da equidade racial, sobretudo para os beneficiários dos programas e projetos sociais aos quais a instituição realiza gestão e cogestão. 

Como podemos, então, promover práticas antirracistas perenes enquanto instituição comprometida com a transformação social? A pergunta que nos move é: como transformar a conscientização de um mês em alicerce para a equidade de todos os dias?

Racismo estrutural é barreira ao pleno desenvolvimento

De certo, a persistência das desigualdades raciais no Brasil revela não apenas um legado da escravidão e uma pseudo abolição no final do século XIX, mas a atuação contínua de estruturas sociais que mantêm a exclusão e a negação de direitos à população negra e aos povos originários.

O passado colonial deixou marcas profundas na memória social do país, onde as desigualdades raciais se traduzem em violência cotidiana que atinge desproporcionalmente a população negra, sub-representação nos espaços de poder e em dificuldade de acesso à educação, saúde e melhores condições laborais. 

O racismo, crime inafiançável e imprescritível estabelecido na Constituição de 1988, não é um evento isolado, mas uma estrutura que molda oportunidades e cerceia juventudes, suas aspirações e o futuro de inúmeras famílias. Esta realidade é um reflexo da perpetuação de um sistema econômico excludente para a maior parte da população do país. 

Em 1979, em discurso na Segunda Conferência Anual da African Heritage Studies Association (AHSA), a pensadora Lélia Gonzalez já evidenciava essa dinâmica com clareza:

“O que existe no Brasil, efetivamente, é uma divisão racial do trabalho. Por conseguinte, não é por coincidência que a maioria quase absoluta da população negra brasileira faz parte da massa marginal crescente”.

Romper com essa lógica exige o fortalecimento de uma atuação antirracista em todos os setores da sociedade.

O papel das Organizações da Sociedade Civil no enfrentamento do racismo

As Organizações da Sociedade Civil (OSCs) têm historicamente desempenhado protagonismo na defesa de direitos e no combate ao racismo, atuando na linha de frente na promoção de justiça social - a exemplo do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) que expressa as demandas da população negra, constituindo um marco legal robusto para a defesa dos direitos étnicos-raciais.

Essa legislação não se limita a ser antidiscriminatória, mas estabelece o dever do Estado e a sociedade adotarem medidas de ação afirmativa para corrigir as desigualdades históricas e fortalecer a identidade nacional.

Já o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei 13.019/2014) torna explícito que diversidade e inclusão são princípios inegociáveis em toda e qualquer parceria com o Estado.

Portanto, promover diversidade não é apenas um posicionamento ético, é obrigação legal e parte fundamental de uma governança responsável.

Equidade racial como compromisso institucional no CIEDS

No CIEDS, transformar consciência em prática significa analisar criticamente nossas próprias estruturas. Em 2024, dos 504.231 beneficiários dos nossos programas e projetos sociais, 50,07% eram pessoas negras. No quadro institucional, pessoas negras representam 51% dos profissionais.

Mas o desafio permanece:

  • 62% nos cargos administrativos

  • 40% nos cargos estratégicos

  • 25% nos cargos de liderança

Essa redução conforme aumenta o nível hierárquico evidencia a necessidade de estratégias contínuas para ampliar essa representatividade, especialmente nos espaços de tomada de decisão.

Políticas internas que transformam realidades

Comprometido com a equidade, o CIEDS tem fortalecido práticas internas importantes:

  • Grupo Vozes Mais Diversas: coletivo autogerido que por três anos promoveu escuta, formação e troca de saberes.

  • Comitê de Diversidade e Inclusão: instância consultiva e propositiva que atua na formulação de políticas internas.

  • Política de Diversidade e Inclusão: documento institucional que estabelece diretrizes permanentes para equidade e pluralidade.

Essas ações reforçam que justiça racial não é evento, é processo contínuo.

Equidade racial como parte da estratégia de impacto

Nosso modelo de gestão, baseado no IRIS (Impacto, Responsabilidade, Inovação e Sustentabilidade), orienta as transformações necessárias:

  • Formação contínua para uma cultura organizacional verdadeiramente antirracista

  • Monitoramento e avaliação das ações afirmativas e dos processos internos

  • Inovação baseada na valorização de saberes e culturas negras

  • Impacto social com protagonismo de movimentos negros e comunidades

É assim que transformamos políticas internas em impacto social mais justo, amplo e duradouro.

Antirracismo é projeto de futuro — e compromisso de todos os dias

A luta antirracista não cabe apenas em novembro. É um esforço cotidiano de reconstrução de estruturas, revisão de práticas e ampliação de acesso. Como instituição social, o CIEDS se compromete a ser agente ativo na transformação de um sistema desigual, fortalecendo a dignidade, a autonomia e a presença do povo negro em todos os espaços.

Honrar Zumbi dos Palmares é mais do que lembrar sua história. É afirmar que a resistência continua. É garantir que a memória, a luta e os saberes da população negra estejam no centro das políticas, das instituições e das decisões que moldam o Brasil.

Por Daniela Santa Izabel e Mariana Paz

 

¹ Fonte: GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero. Coleção 2 Pontos; volume 3, página 58. 1982.